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malavoadora.porto – sonho de uma noite de verão*

* este é um texto colectivo, escrito com várias mãos e nenhuma caneta na malavoadora, com o José Capela e o Jorge Andrade. Foi publicado a 30 de Novembro de 2015, no caderno ‘Uma Família Inglesa’. Há menos de 2 meses, portanto. Dei por mim a pensar hoje que isto foi agora mesmo, mas já parece material de ‘arquivo’, porque o futuro tem sempre razão.

Em 2013, em Novembro, estávamos a viver uma espiral celebratória: festejávamos 10 anos de atividade numa grande festa cheia de amigos, no Teatro Maria Matos; começávamos a publicar uma coleção de livros; e inaugurávamos a malavoadora.porto com vários espetáculos, uma festa e muita expectativa.

Passaram dois anos.

Não há como ignorar que inaugurámos a malavoadora.porto num período de gigantesca insuficiência económica e fragilidade simbólica do campo cultural. Apesar da omnipresença dos discursos laudatórios das atividades culturais e do seu alegado contributo para a vitalidade urbana, a cultura – e, em particular, a prática artística – continua sem um orçamento à altura do impacto que lhe é politicamente imputado. Este contexto político-económico é indissociável da entrada em funcionamento da malavoadora.porto, um colossal desafio de gestão cultural, que assumimos em simultâneo com o intenso ritmo de produção, criação, colaboração e circulação nacional e internacional dos espetáculos da companhia.

Mas a abertura do nº 283 da Rua do Almada, há dois anos, coincidiu também com a devolução dos teatros municipais à cidade do Porto, num movimento que inaugurou uma certa efervescência cultural de que a cidade estava enormemente precisada e que lançou as bases para uma renovada exigência cultural e vivência cosmopolita. Não nos cabe avaliar a belle époque que se vive na cidade – mas contribuir ativamente, com o que é específico da mala voadora, para o seu dinamismo e longevidade. O recente desaparecimento de um dos mais brilhantes agents provocateurs da cidade, o Vereador Paulo Cunha e Silva, faz com que o nosso contributo empenhado seja – ainda mais – um imperativo categórico. Continuaremos a operar na convicção de que uma cidade precisa de equipamentos culturais públicos na mesma medida de que depende de espaços não convencionais, com uma programação complementar à oferta cultural institucional da cidade. Acreditamos que é, precisamente, da convergência de espaços com escalas, missões e identidades distintas que nasce uma cidade com textura cultural.

Durante o ano de 2014 e boa parte de 2015, fizemos da malavoadora.porto um laboratório de experimentação programática, durante o qual acolhemos espetáculos de artes performativas nas suas mais diversas expressões, projetos educativos, atividades formativas, lançamentos de livros, ensaios abertos e muitas residências de artistas. Estabelecemos parcerias com as instituições culturais da cidade e com alguns dos seus festivais mais relevantes (acolhemos um dos programas-âncora do FITEI, os Expatriados, e fomos a casa da sua festa de encerramento, numa noite feliz de Junho). Orgulhámo-nos de integrar o Primeiro Queer Porto. (Por esta altura é prudente pararmos com os exemplos, sob pena de sermos injustos nos destaques). Intencionalmente, começámos por adotar uma postura de abertura e informalidade, desdobrando-nos em esforços para partilhar os recursos que tínhamos, enquanto ganhávamos tempo: para estudar as transformações da cidade e inventarmos um modo específico de nos relacionarmos com ela, para pensarmos a nossa identidade em simbiótica relação com a atividade principal da companhia, fazer teatro.

Esse ‘ano zero’ de extraordinária disponibilidade chegou, naturalmente, ao fim. Neste último trimestre de 2015 organizamos as nossas primeiras iniciativas de programação: HAPPY TOGETHER e UMA FAMÍLIA INGLESA, dois programas bienais que continuarão em 2016.

Durante este tempo, acabámos por concluir que, na medida em que a mala voadora (a companhia de teatro) insiste em operar numa deliberada e vital instabilidade, era legítimo que deslocássemos essa “não-identidade” para o novíssimo projecto de programação. Apesar de (sim) termos uma blackbox, e (sim) sermos, fundamentalmente, uma companhia de teatro, não queremos que o nosso espaço no Porto seja um “teatro”, mas antes um ponto de confluência, diálogo e contaminação entre (1) práticas artísticas e produção de pensamento; (2) diferentes áreas disciplinares; (3) diferentes modos de produzir especulação sobre as coisas e as formas; e (4) diferentes geografias.

As próprias características do edifício da malavoadora.porto apontam neste sentido: longe de qualquer cânone de edifício cultural, aquilo de que dispomos é um conjunto de espaços interiores e exteriores, ligados de modo improvável e, nesse sentido, aberto à invenção de usos e de combinações de usos. Também nesta arquitetura, a mala voadora revê a sua especificidade.

Esta não-identidade também se traduz no modo como a mala voadora coloca a questão dos seus contextos. Vemo-nos a habitar um espaço situado entre as crianças da freguesia da Vitória e as “vanguardas” artísticas internacionais. Interessa-nos aquilo que podemos retirar da nossa relação artística com os micro-contextos, do mesmo modo que nos inscrevemos na mais descomplexada e fervorosa contemporaneidade.

Entendemos a programação como (mais um) âmbito experimental. Trabalhamos, provisoriamente, assentes em quatro premissas: (1) a programação enquanto investigação, (2) a proposta que o edifício encerra, (3) a vocação cosmopolita e (4) a inscrição na cidade.

Claro que não está tudo dito, nem pensado. E ainda bem. Isto é só o início de um micro-projecto de programação que se instalou no Porto para perdurar para lá das festas na piscina. É um exercício subaquático não-sincronizado. E não o sonho de uma noite de Verão.

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