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Tríade Diabólica III. TEMPO

Volto ao início, ao tal ‘tempo comprimido’ em que todos operamos no sector cultural. Quando um determinado projecto atinge um certo nível de notoriedade, exposição e internacionalização, as exigências de planeamento do seu trabalho aumentam exponencialmente. Todo e qualquer tempo disponível (um mês, uma semana, uma noite..) para viajar, ensaiar, montar… é analisado, escrutinado, planeado com um grau de minúcia que não deixa margens para erro e muito raramente margem para reformulações ou pausas. Há demasiados factores a ter em conta: a convergência de calendários internacionais de programação regular e de festivais, a disponibilidade de elencos (muitas vezes, eles próprios, multi-nacionais), as diferentes sazonalidades, a economia de custos, os prazos de execução das candidaturas, na maioria das vezes curtos…. O resultado mais comum de todos estes processos são calendários de trabalho intensíssimos, em que os períodos de criação, circulação, montagem e remontagem de vários projectos em simultâneo estão todos contaminados entre si. O que não configura um cenário necessariamente mau – é normalmente sinónimo de vitalidade de criação, gestão e comunicação – mas tem um impacto assinalável na qualidade dos processos de criação, designadamente na possibilidade de maturação dos projectos artísticos; tem também um impacto não despiciendo na qualidade de vida dos intervenientes (artistas, mas também os técnicos, produtores, gestores que com eles trabalham). Se, a este cenário, acrescentarmos as situações de co-criação internacional, tudo se torna ainda mais exigente. Será talvez um paradoxo da gestão cultural: quanto mais bem-sucedido é um projecto, mais dificuldade tem em conseguir estabelecer o seu próprio ritmo, um ritmo que seja consentâneo com a vida pessoal dos seus protagonistas, com os seus métodos de trabalho, que respeite os tempos de pesquisa e que preveja um equilíbrio minimamente saudável entre a vertigem da viagem (literal e metafórica) e a sua necessidade de sedimentação. Conheço poucas colaborações artísticas internacionais genuínas que não tenham levado tempo a estabelecer-se. Adicionalmente, tudo isto se passa num contexto em que há algum perigo da relativização da importância dos contactos presenciais em face da disponibilidade exponencial de ferramentas e dispositivos tecnológicos cada vez mais sofisticados que permitem o trabalho a distância. O que têm os fundos para a mobilidade a ver com tudo isto? Seria muito interessante que alguns deles (não necessariamente todos, e isto aplica-se a todas as propostas que fiz) pudessem financiar tempos alargados de pesquisa e criação, num duplo sentido: por um lado, abrindo candidaturas para situações de mobilidade que se materializariam daí a 2 ou 3 anos, por exemplo; e, por outro, prevendo tempos de permanência ajustáveis (por negociação) aos calendários específicos de cada projecto, muitas vezes pré-determinados por sujeitos e circunstâncias que não os seus protagonistas.

Termino com o Gonçalo M. Tavares. Sobre o tempo e o espaço, então (sobre mobilidade geográfica, portanto):

“Diz-me a que velocidade andas, dir-te-ei qual a tua moral. Ética, já não como o percurso feito pelos pés, os sítios por onde se anda ou se andou, mas a velocidade com que se percorreu esses espaços. Assume-se, pois, que os espaços são todos iguais; no limite: (…) como se já existisse diferença entre aqui e ali, e a diferença residisse apenas na velocidade, na pressa com que se sai ou se entra num espaço, na lentidão com que se conhece determinado território. No fundo, os espaços deixam de ser relevantes, pois qualquer acontecimento poderá ocorrer em qualquer espaço; (…) há muito que se deixou de acreditar na ligação definitiva entre espaço e acto. É pois, a velocidade do corpo, mas também, acrescentemos, a velocidade do espírito, definindo este (…) o sítio onde a visão do mundo por parte do individuo se modifica (…)”[1]

(Intervenção sobre mobilidade dos artistas e dos operadores culturais, na Fundação Calouste Gulbenkian, a convite do Roberto Cimetta Fund – excerto)

[1] Gonçalo M. Tavares, in Atlas do Corpo e da Imaginação

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Tríade Diabólica II. Política

“All experience, in matters of philosophical discovery, teaches us that, in such, discovery it is the unforeseen upon which we must calculate most largely.”[1]

Poe está, conscientemente, a justapor a palavra ‘calcular’ (que implica uma contabilização objectiva dos factos mensuráveis, à palavra ‘desconhecido’ ou ‘imprevisto’, aquilo que não pode ser antecipadamente medido. Como calcular o desconhecido?

Todos saberemos o suficiente acerca de como as justificações para a intervenção e o financiamento públicos de cultura se têm vindo a alterar radicalmente na Europa e no resto do mundo, desde que a pertinência da política pública de apoio às artes ficou aparentemente dependente da sua capacidade de criar impactos.

Em Portugal, já vimos um pouco de tudo: a cultura e as artes a ‘gerarem’ impactos económicos, sociais, urbanísticos, a contribuírem para a redução da pobreza, a paz no mundo e a competitividade económica. Às vezes, tudo isto ao mesmo tempo. Sem, esquecer, claro, o historicamente inultrapassável papel de representação nacional. Os artistas e os agentes culturais são, demasiadas vezes, tratados com condescendência pelo poder político – que alterna esquizofrenicamente entre glorificar a sua capacidade de produção simbólica e representação identitária nacional (o que quer que isso seja) e acusá-los de improdutividade e de subsídio-dependência. Os equívocos acumulam-se, de parte a parte.

Não tenho nenhuma vontade de fazer aqui uma reivindicação ingénua de que a política deixe de interferir no tecido cultural (desde logo, porque entendo que utilizar um financiamento ou um serviço público é reconhecer um pacto social que depende da tensão democrática entre poder e cidadãos); nem a defesa de uma arte supostamente ‘autónoma’, ‘politicamente neutra’ ou completamente desinteressada da realidade social em que inevitavelmente se inscreve (aliás, hoje em dia, muitas decisões formais/artísticas são simultaneamente decisões bastante pragmáticas na relação com o mercado, desde logo tentando assegurar a circulação da obra, através da portabilidade ou da aproximação a um certo ‘apelo universal’… Não há inocentes, portanto.)

O que proponho, no capítulo da política, é que os fundos independentes e especializados em mobilidade possam evitar os exageros de instrumentalização cometidos pelas políticas públicas de cultura e não condicionem exclusivamente a atribuição de financiamento à adesão (da companhia, do artista, do projecto) a uma determinada ‘causa’. Não proponho, obviamente, que os fundos deixem de ter legitimidade para decidir, monitorizar e avaliar que tipo de projectos querem financiar, ou quais as suas áreas geográficas de eleição, mas que mantenham os seus critérios de selecção tão distantes quanto possível de uma interferência demasiado directa na proposta artística.

Evitando, por exemplo, que o ‘tema’ do projecto seja completamente coincidente com a agenda política e económica da sua instituição e não a expressão de uma vontade artística. Ou evitando que a descrição solicitada dos projectos artísticos candidatos, ou as ‘motivações para a circulação’ sejam sujeitas a agendas pré-determinadas, muitas vezes inibidoras de contactos artísticos autênticos. Esta retirada estratégica das inúmeras agendas políticas dos critérios de atribuição de fundos para a mobilidade pode ter efeitos interessantes, creio, (a) na diversidade de protagonistas candidatos (que, até agora, não se reviam na obrigatoriedade de sujeição a um determinado tema ou metodologia) e (b) na autenticidade das situações de mobilidade (focadas no desenvolvimento mútuo de um projecto artístico ou cultural). Provavelmente, tal exigiria um acompanhamento mais próximo dos projectos seleccionados, e a introdução de linhas de intervenção-piloto – mas os resultados podem ser francamente mais genuínos e, paradoxalmente, mais políticos. Se o resultado for a transformação da resposta à pergunta, De que ângulo vês o mundo? De que ângulo vês o outro?, os dividendos políticos parecem-me evidentes.

(Intervenção sobre mobilidade dos artistas e dos operadores culturais, na Fundação Calouste Gulbenkian, a convite do Roberto Cimetta Fund – excerto)

[1] Edgar Allan Poe, citado por Rebeca Solnit em ‘A field guide to getting lost’

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A Tríade Diabólica – I. Dinheiro.

money

Parto de três palavras vulgares: dinheiro, tempo e política, uma espécie de tríade diabólica com a qual tentarei responder ao desafio de dizer alguma coisa relevante (!) sobre mobilidade artística numa sala cheia de especialistas de todo o mundo (!).

DINHEIRO

Comecemos pelo dinheiro. Qualquer mecanismo de financiamento da mobilidade artística que se instale em países em que o financiamento estrutural da criação artística está estrangulado, arrisca-se a falhar redondamente os seus objectivos e arrisca-se a que esses fundos sejam utilizados, entre malabarismos financeiros mais ou menos engenhosos, para complementar o financiamento de projectos já existentes / não relacionados com o contexto a que o fundo se refere ou sem reflexão autêntica acerca das razões (que não meramente instrumentais) que justificam tal ‘circulação’. Já (quase) tudo foi dito ou escrito sobre as discrepâncias de condições de trabalho e suporte social entre trabalhadores culturais dentro da União Europeia e em países terceiros. Nada é novo: Nas artes, níveis elevadíssimos de motivação, dedicação e auto-organização contrastam com formas de trabalho precárias e apoios sociais frágeis. Quando em circulação, essas discrepâncias (que tendemos a ignorar no dia a dia, para não enlouquecer) tornam-se incontornáveis: os infelizmente famosos ‘formulários A1’, o confronto entre sistemas de segurança social absolutamente diferentes, o custo da burocracia (falo do dinheiro, nem falo da burocracia…!). Julgo que seria importante que os fundos independentes que promovem a mobilidade utilizassem o seu know-how específico e a sua capacidade de lobby e de advocacy, com governos, fundações e observatórios para contribuir activamente para o reforço dos orçamentos públicos dedicados à cultura em geral e à criação artística em particular. Tornar clara a interdependência saudável entre fundos e apoios especializados (no caso, à mobilidade) e um ecossistema artístico que não esteja sufocado, miserável ou mendicante. Tornar claro, portanto, que, em certos países e/ou em determinados contextos socioeconómicos, para que apoios e incentivos específicos funcionem, é necessária uma política pública de cultura com um orçamento à altura do impacto que lhe é politicamente imputado.

Continuemos no dinheiro. Queria chegar também aqui, ou sobretudo aqui: há hoje, em demasiados programas de financiamento, uma hipervalorização das despesas com ‘ a actividade’, a ‘comunicação’, a a ‘disseminação de resultados’, e uma relutância em financiar os custos com recursos humanos, os chamados ‘custos estruturais’, isto é, a mesma relutância de sempre em financiar a criação artística, como se oferecerem-nos um bilhete de avião, um sítio para dormir e per diems de 25 euros por dia (e isto são os casos bons!) fosse ‘rendimento disponível’. Quanto está a circular, ou se viajou para determinado país, um artista ou um agente cultural está a trabalhar – isto parece óbvio. Viajou para investigar um determinado contexto, ou tema, ou para trabalhar com um artista local, ou para trabalhar com uma comunidade específica, ou para ensaiar um projecto, ou escrevê-lo, ou para repensar um projecto que tem em mãos à luz de uma nova realidade. Isto parece óbvio, mas há demasiados programas que ignoram que, enquanto viaja, a vida do artista/agente cultural/pessoa não fica suspensa, numa espécie de vácuo bondoso, em que a prestação da casa deixa de ser debitada, ou a mensalidade do infantário, ou quaisquer que sejam os custos de uma vida normal. Como alguém que está muitas vezes a redigir candidaturas a programas e fundos, não sou capaz de entender esta dificuldade em financiar o trabalho, o custo do trabalho (salário, honorários, respectivos impostos… ) como apenas um particularismo técnico, mas antes como mais uma tentativa de invisibilidade do ‘factor trabalho’ no contexto de uma economia neo-liberal.

Esta relutância em financiar o factor trabalho é umas vezes explícita (quando os custos elegíveis são apenas os das deslocações e per diems, por exemplo) e outras vezes implícita (quando o equilíbrio entre despesas estruturais e despesas com actividade é valorizado nos critérios de apreciação da candidatura ao apoio ou quando as fases de ‘investigação’ ou ‘preparação’ não são elegíveis).

Na prática, isto significa que ter acesso a uma determinada ‘oportunidade’ de mobilidade implica, desde logo, ter uma fonte de rendimento estável ou suficiente. Ora se sabemos que muitas vezes, já constitui um desafio suficiente, para um sector de trabalhadores por conta própria e de micro-organizações, mobilizar recursos (humanos e financeiros) para lidar com a burocracia associada a candidaturas e à sua concretização, imagine-se se a oferta dessas oportunidades de circulação, por não preverem recursos financeiros adequados, viesse a excluir, uma vez mais, os mais frágeis, aqueles com menos recursos. Que as situações de mobilidade e os fundos que a financiam não tenham como missão resolver estas discrepâncias de rendimento e protecção social é compreensível, claro, mas que as tornem mais agudas é inaceitável.

(Intervenção sobre mobilidade dos artistas e dos operadores culturais, na Fundação Calouste Gulbenkian, a convite do Roberto Cimetta Fund – excerto)

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