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éramos modernos e não sabíamos

As declarações de hoje da Ministra da Cultura são demasiado interessantes para serem ignoradas. Sendo curtinhas – duas ou três frases, não mais – são bestialmente reveladoras, uma espécie de haiku da política cultural contemporânea. Ora vejamos. A primeira ideia é a de que “não há nada de extraordinário’ no recurso às raspadinhas para co-financiar a cultura. Acertado. Há já um tempinho que não há, em boa verdade, nenhuma ideia extraordinária vinda do MC em matéria de financiamento da cultura. Nos dias bons (e também os tem havido) há acolhimento e implementação de ideias propostas (e suadas) pelos agentes culturais independentes e recuperadas de exigências e de lutas de há vários anos, nalguns casos, décadas. Talvez, aliás, seja melhor assim. Nas raras ocasiões em que fomos confrontados com ‘ideias’ gizadas no Ministério, ficou a festa por fazer, tal foi a indignação.

A segunda ideia – expressa na frase “a lotaria do património é um instrumento muito popular em países como por exemplo a França”  é uma velha conhecida das políticas culturais: a ideia é boa porque em França também fazem assim. Nesta como noutras iniciativas, é confrangedor que a França – que durante tantos anos e por tão boas razões foi o modelo fundacional dos modos de organização e inscrição social e política da cultura na Europa – continue a ser ‘a’ referência para um país remediado e periférico como Portugal pensar o seu futuro. Aparentemente, tardamos em dar-nos conta das monumentais diferenças entre o nosso país e essoutro, que possui tão só um dos mais ricos e estruturados sectores culturais europeus; aparentemente, também, não queremos considerar o tempo que passou entre o momento histórico em que essas medidas foram adoptadas e o momento actual, nem reflectir acerca das transformações sociais, económicas e políticas que se deram entretanto. Mas, sobretudo, parecemos não querer admitir que possam existir exemplos a seguir noutras latitudes, designadamente, fora da Europa e do espaço norte-ocidental. Esta atitude tem um nome, e não é bonito…

Por último, a ideia final, qual míssil anti-crítica, é a de que podemos estar descansados porque “irão ser avaliados os seus impactos”. A obsessão com os impactos ganha aqui novos contornos. Conseguir medir ou argumentar acerca do ‘impacto’ de um projecto já não é apenas pré-condição para o poder implementar, mas um salvo-conduto para o pôr em andamento. Eu – que desconfio mas não diabolizo a medida – fico a achar que, de facto, o debate acerca disto, verdadeiramente, não se fez. É que não é o resultado da medida que está em causa, mas a sua adequação – do ponto de vista ético, sociológico, político. Anunciar que a medida será avaliada (previsivelmente, contrapondo às eventuais reservas e críticas o montante realizado entretanto) é falhar o ponto: não são os fins, são os princípios.

PS: Com isto, não falei das raspadinhas. Em todo o caso, já disse o que tinha a dizer…no Natal de 2019, quando a medida foi anunciada. Confirma-se que não tenho talento para fazer coincidir as minhas ruminações com o tempo mediático. Mas, valha a verdade, isso é ao mesmo tempo razão de alívio (no plano pessoal) e de interesse (porque colados à actualidade já andamos nós em demasia).

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A grande batota

Três meses sem escrever explicam muita coisa, e resultam nalguma desorientação (e almoços adiados). Penso melhor quando escrevo, ou seja, vivo melhor quando escrevo. Nisso não sou snobe, qualquer pedaço de escrita me serve: ensaios, emails longos (são cartas), textos científicos, postas no blog, até redacções para candidaturas. Nos últimos tempos, por conta de afazeres vários, não consegui atirar-me a nenhum, pelo que já estou levemente irritada. Faz-me falta, apesar de saber que a escrita é uma espécie de batota, fingimento de uma certa organização das coisas. Escrever é arrumar a cabeça, encontrar um lugar de onde ver o mundo, e um método para participar nele. (É tudo falso, claro. Nem o mundo se deixa organizar, nem as palavras têm tanto poder – pelo menos não as minhas.)

Portanto, não tenho escrito. Em compensação, tenho conversado. São conversas diferentes estas, as que acontecem em público, na internet. Devem faltar aqui aspas: a internet não é um sítio, o público não franze a testa, nem se mexe na cadeira, nem tosse. E acontece tudo num tempo curto e pré-definido, o que – convenhamos – também é uma mutilação valente da prática da tagarelice. Não sei se partilhá-las aqui não é idiota, porque também isso me parece estranho: que uma conversa dure, possa ser revisitada, sobreviva àquele dia, contexto, companhia, humor. Mas dado que não tenho textos novos, farei batota e deixarei aqui em baixo as ligações para alguns desses episódios. Entretenham-se: Stevenson diz que a conversa é “uma forma heróica da bisbilhotice”.

Conversa com Fátima Alçada a propósito de ‘Outros Futuros’, uma revista/iniciativa d’A Oficina, Guimarães.
Conversa com João Fiadeiro e Victor Hugo Pontes, moderada pela Helena Teixeira da Silva, no âmbito do Festival DDD.

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