Uma terceira coisa
Além de me pôr a pensar no teatro que se faz hoje, e no teatro que se faz hoje no Porto, o “M’18” da Estrutura (Rivoli, 25 e 26 de Maio) trouxe-me o incómodo de uma comichão pessoal. Já lá vou, quando acabar de atender este freguês. Primeiro, o espectáculo, profissionalíssimo: eles parecem conseguir captar (apropriar-se?) um certo espírito millenial de hiper-relativismo e hiper-conexão em que o teatro raramente é feliz, e aqui é-o. O pior destes exercícios costuma ser a sensação “ah, é como um episódio do Black Mirror mas em teatro”, o melhor é quando ficam mais perto da formulação de uma linguagem que também pode ser teatral, porque não? Música, figurinos, etc etc, parece tudo no sítio, é tudo assumidamente estilizado, mas a proposta é consistente do início ao fim. Exceptuando o texto, que para mim tem fragilidades de púlpito aqui e ali que se dispensavam, tudo o resto habita o aquário do século XXI de forma admirável: hiper-sexual, hiper-individual e politicamente à deriva. Eles não querem ser o “o oprimido nem o opressor” (mas à saída dão-nos um paralelo…) não sabem se são filhos da revolução, ou netos, herdeiros ou carrascos. Não querem isto nem aquilo (esquerda nem direita?), querem ‘uma terceira coisa’. É isso mesmo que é a tarefa deste tempo, se calhar.
Normalmente não me fascina o universo político sem utopia nem distopia, mas essa ‘terceira coisa’ pode vir a ser útil, se for mais além do que, até agora, o relativismo pós-ideológico foi capaz de ir. Depois do encolher de ombros, trade mark dos pós-modernos, uma coisa nova para desejarmos? Pode ser o melhor que está a acontecer-nos, o futuro também deixar de ser binário.
Tenho perdido umas quantas horas a pensar na falta que fazem umas borrifadelas de bom-senso para cima da malta. Dou por mim a desistir de certas conversas, porque onde antes havia uma boa discussão, farpas para lá e para cá, já só vejo prepotência, agressão e entrincheiramento. O espírito crítico fugiu com a cunhada e agora é só crítica, sem espírito nem inteligência vigilante. Quem acusa é que sabe, sempre. Se não acusas és idiota, ou colaboracionista, o que é pior, claro. E não culpem as redes sociais: é verdade que permitem uma amplificação estupenda das opiniões pronto-a-comer mas não são elas que fabricam os pistoleiros.
Discordo de quem concordo e concordo cada vez mais com as posições daqueles de quem discordo. É uma chatice e um paradoxo tramado. Ou é o começo de uma coisa nova, que ainda não sei nomear. M’18?
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Plano de Ruminação
Na minha inclinação peripatética tenho acumulado quilómetros entre o enclave das Belas Artes e o mar: vou fazendo a fotossíntese, calcando a cidade e arrumando ideias, mas de cada vez que regresso a casa a arrumação piorou. A lista das ruminações recentes foi trabalhosa. Felizmente o Porto foi entretanto campeão e andei a agitar cachecóis e a espantar irritações, que a alegre coboiada também serve o escapismo intelectual. Por isso, ficam a reflexão sobre o encontro do IETM no Porto e outras incursões sobre a amada nação cultural enterradas debaixo do pontapé do Brahimi e das lágrimas do Sérgio Conceição. Em vez disso, estou aqui de porteiro de mais uma ego-trip para partilhar as chatices com que me vou ocupar no doutoramento. Quem quiser sair, é agora, a partir daqui fica chato.
Expor sucintamente o ponto de partida de um objecto de estudo é sempre redutor, mas parto para esta tarefa determinada a fazê-lo de forma aberta e dialogante, pelo que prefiro correr os riscos da exposição necessariamente fragmentada do que alimentar o monstro na torre de marfim. Não podia, aliás, ser de outra maneira, porque me propus trabalhar no pressuposto de que a investigação sobre artes tem uma autonomia epistemológica que deriva da própria natureza do trabalho artístico (sigo a talentosa Steyerl) e se caracteriza por um compromisso primordial com a produção de conhecimento útil aos artistas e aos que com eles trabalham. Isto passa por assumir o carácter híbrido da gestão cultural e dos estudos artísticos e, nessa medida, procurar ser orientada por uma visão devedora da visão dos artistas, integrando as narrativas produzidas pelos próprios sobre o seu trabalho, seja de forma directa, através das suas obras, seja indirectamente, através dos seus testemunhos. Será um esforço simultaneamente ético e estético: ético, porque habilita a própria produção artística para a construção do conhecimento que lhe é dedicado; estético, porque suspeito que a idealização formal própria dos artistas pode originar formulações novas quanto ao objetivo da pesquisa (ultrapassando manuais de gestão das artes reciclados da gestão empresarial). Posso estar errada, claro, o que também dá uma certa graça a isto tudo.
O ponto de partida, portanto, é o seguinte:
Aturdidos pelo pragmatismo hegemónico, os artistas e os que com eles trabalham parecem (ter de) investir toda a sua energia no contínuo combate ao subfinanciamento da actividade artística, na denúncia das situações de precariedade em que o sector largamente assenta, no questionamento dos modelos de apoio público à criação e difusão, entre outros aspectos de ordem operacional. A estes debates, decisivos, gostava de juntar o questionamento dos próprios modelos de criação, organização e trabalho dos artistas, os seus pressupostos e a natureza das relações entre pares que se têm vindo a estabelecer. Tal significa que, claro está, é urgente atender às condições do trabalho criativo em Portugal, mas também que, ao invés de analisarmos o comportamento das estruturas e dos artistas face às mutações do sistema artístico institucional (nas suas dimensões laborais, legais, económicas), queremos olhar aprofundadamente para o que se passa dentro das estruturas de criação. Não dispensando o aparato das políticas culturais e suas implicações para a estruturação do tecido artístico, interessa-nos compreender motivações e decisões individuais: porque fundamos e mantemos companhias de teatro e dança? Como as gerimos? Ou, dito de outra forma, de que modo se intersectam os regimes de criação e de produção?
Ao incidir sobre a dinâmica interna das organizações artísticas, estamos também a questionar a ideia de que, por se tratarem de entidades sem fins lucrativos, estas se orientam necessariamente por um padrão democrático nas suas práticas de trabalho e a sublinhar que a análise das condições materiais do trabalho artístico não é suficiente para compreender a sua complexidade ou algumas transformações importantes que o afectam: a crescente presença de gestores e produtores culturais trabalhando a par dos criadores, a emergência da crítica ao modelo individualista do artista-virtuoso-empreendedor, os sinais de esgotamento do modelo clássico de companhia, a contaminação crescente entre sistema institucional/projectos alternativos, ou a expansão das práticas colaborativas, por exemplo.
Partilharei mais detalhes em breve, mas, se não tiver sido engolida pela retórica, terá dado para perceber: a investigação centrar-se-á no estudo da forma como artistas, programadores, produtores e gestores culturais se organizam para trabalhar hoje, em Portugal, nas artes performativas. O desafio concreto é perspectivar novos modelos de colaboração entre os que produzem arte, os que acompanham quem a produz e a formulação de políticas culturais. Se me virem na rua e parecer distraída, ando a pensar nisto.