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Para quê viajar

We are creatures of private convention. But we are also the ways in which we enlarge our coasts.
Teju Cole, Strange and Known Things

Para escapar ao inverno

para escapar à mesmice

para escapar ao trabalho

para afastar o azedume

para aprender

para ver

para ver

para ver

(e há a comida para provar.)

Para carregar as baterias do optimismo

para carregar as baterias do pessimismo

para ouvir outras línguas dizerem as mesmas coisas

para treinar o deslumbramento

para nos pormos à prova

para praticar o amor e uma cabana (há wi-fi?)

Viajamos para confirmar a nossa insignificância, e para espantar a estupidez. Se correr bem, viajar deve pôr tudo em causa: os nossos sentidos, sabores, hábitos, sistemas de crença, a nossa sensação de segurança e o esquema instável de condicionamentos e escolhas em que se traduz a nossa vida. Se correr bem, devemos querer sempre mudar-nos para os sítios que visitamos. (O efeito depois passa, quinzena vai, quinzena vem.)

Aqui no Chile senti essas coisas todas, apesar de estar confusa porque já não sei onde estão as linhas que correctamente separam o turismo da viagem, nem sei se viajar continua a fazer sentido, pelo menos para tão longe (ou só se for para tão longe?). Preciso de doses cada vez mais elevadas de relativismo cultural e moral para verdadeiramente acreditar que tudo pode mudar de cada vez que levanto num Airbus 340. Também há quem diga que a próxima tendência das elites urbanas e eco-conscientes, no que a viagens diz respeito, é, justamente, não viajar: https://brightthemag.com/the-next-trend-in-travel-is-dont-226d4aba17f6 . Até já há uma designação para isso, fly shame. Não é que me convençam os argumentos, mas é difícil ficar completamente indiferente às implicações ecológicas, económicas e sociais das nossas deambulações por um planeta em colapso evidente. Ainda para mais, estes movimentos já chegaram às bolhas privilegiadas de que também faço parte, pondo em causa as viagens profissionais para conferências ou festivais. Ups. Em todo o caso, mesmo que bem intencionados, são sempre de desconfiar estes movimentos que castigam os comportamentos individuais. Pergunto, como quem cospe para o ar: a sua proliferação não suscitará, perversamente, um apaziguamento das consciências colectivas, fazendo de nós comprometidos carregadores de sacos recicláveis, incapazes de defender rupturas sistémicas que realmente invertam a lógica expansionista em que vivemos (e na qual a vertigem da viagem se insere)? Que grande chatice, que ainda me falta tanto mundo para ver.

Tiro sempre poucas fotografias, mas asseguro-vos que vi:

Muitos reclamos de pneus

Árvores recortadas de todas as formas possíveis

Gado

Muitos lagos, maiores que os da Suíça ou assim me pareceram pelo menos

Muitas casas bonitas de madeira

Muitas varandas

Uma cidade a destilar charme

Muito lixo por apanhar

Um número improvável de cães vadios

Bancas de mote con huesillo a cada 500 metros

Pelo menos uma boa exposição

Mais do que muitos centros culturais que apetece frequentar

Lama e chuva, em doses dispensáveis

Turistas do tipo previsível, em doses dispensáveis

Vulcões

gado

gado a pastar

gado a dormir

gado parado no campo espantado com a nossa pressa

Pick-ups Mitsubishi

Pick-ups Toyota

Também nadei ao pé de um vulcão, e isso emocionou-me mais do que estava à espera. Quis estender a mão e reler O Amante do Vulcão da Susan Sontag, que é maravilhoso, mas, lá está, os meus livros estão a 11 mil quilómetros de distância, ou queres conveniência ou queres desapego, nunca nada está perfeitamente afinado.

Escrevi dois pedaços de texto em forma de lista, sem ter tomado essa decisão formal. Usar listas na escrita é um estratagema batido, embora se for bem feito possa ter a sua eficácia. Julgo que precisam de ser bem longas, e ter um ritmo precipitado, para provocar a adesão do leitor. (A adesão do leitor!) Não conheço as razões dos outros, mas acho que eu escrevo por excesso de amor-próprio. (A minha mãe confirma de certeza).

Um dos meus hobbies é resmungar a propósito dos textos mal escritos, mal pensados, de vocabulário preguiçoso. Nesse mundo das expressões eficientes, os silêncios são sempre “ensurdecedores” e “extraordinário” e “absolutamente” são panos para todo o uso. Estas imagens, expressões, metáforas, funcionam assim: não dão trabalho, saem baratas, são inclusivas, isto é, todos as entendem, proporcionam um efeito imediato no leitor e emprestam a quem escreve um certo ar de capacidade expressiva. Só que não duram mais do que o tempo que demora a lê-las porque como já as lemos em milhares de sítios não as associamos a sítio nenhum. O timing (quer dizer: o tempo conveniente a alguém) é que manda, mesmo que o trabalho do pensamento e da linguagem não esteja terminado. Time is now. Publique-se. Hype is the new lingua franca. ( mais Teju Cole)

Um catálogo realista das nossas viagens não interessa a ninguém. No filter, no glory. Acho que vou continuar a viajar mesmo que não saiba para que é que serve e que demore depois sempre uns meses a liquidar o visa. De vez em quando vou por fotos, e legendas disto, e isto, isto, isto e mais isto, porque o mundo está cheio de coisas para catalogar. Escapar à vulgaridade fica para a próxima. Para a próxima esforço-me mais, e faço uma lista melhor e maior. Melhor e maior, para a próxima (tudo). So long, Chile.

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